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A Bruxa Holda: a Caçada Selvagem e o Solstício de Inverno

Hoje nós, pagãos, celebramos o Solstício de Inverno aqui no Hemisfério Sul. E, com ele, resgatamos a Caçada Selvagem. Minha forma de celebração com você, leitor, será oferecendo um antigo Conto. Esse Conto há séculos é narrado como um Conto de Fadas para crianças. Mas, assim como muitos Contos desse gênero, ele tem na sua origem uma profunda raiz religiosa pagã. Antes, porém, é preciso explicar um pouco a relação entre a Senhora Holda, a Caçada Selvagem e o Solstício de Inverno.

A figura nos Holda (ou Holle/ Huld/ Hulda) nos aparece como uma Deusa germânica associada à agricultura e que, na noite do Solstício de Inverno (Yule), visita nosso mundo em uma Caçada Selvagem, recolhendo as almas dos mortos e punindo ou presenteando os humanos por suas ações.

Segundo as lendas, Holda estaria relacionada ainda à tecelagem (simbolizada na roca de fiar) e à geração de neve no mundo dos homens.

No período medieval, tais cavalgadas foram relacionadas à prática da Bruxaria, pois seriam as cavalgadas das mulheres humanas (sobre o efeito de algum transe ou viagem espiritual) rumo ao encontro com a Deusa para quem prestavam culto.

 

Por que Holda é vista como Bruxa?

Em algumas culturas há relatos de uma estreita relação entre as Bruxas e “cavalgadas” coletivas pelos céus. A “cavalgada” é na verdade um vôo noturno, onde as Bruxas saem de suas vidas mundanas para ir ao encontro dos Deuses ou para entrar em uma luta contra seres mágicos (feéricos) que não desejam o bem aos humanos. Observamos essa prática na crença italiana ligada aos Benandanti.

 

É claro que é necessário fazer algumas considerações aqui. É preciso dizer que a maioria desses relatos é do período medieval cristão. Então é preciso selecionar aquilo que é dito. Durante a Inquisição as pessoas viveram um frenesi religioso. Acredito que todos queriam ter o que falar ou contar/denunciar sobre seres fantásticos e práticas hereges. Nessas horas penso sempre na frase “quem conta um conto, aumento um ponto”… E de “ponto em ponto” temos um parágrafo inteiro, não é mesmo?! rs

 

Os relatos oriundos das torturas realizadas pela Inquisição são ainda mais complicados de serem aceitos em sua totalidade. A dor e o desespero levam as pessoas a admitirem participação até naquilo que não têm.

 

É preciso também tomar cuidado com a linguagem metafórica. Certamente esses vôos de Bruxas não eram de fato vistos no céu… Eram voos do espírito! Esse é pra mim um dos fatos que quase não vejo ninguém falar, mas que sempre foi meu Norte nas minhas práticas. Escreve aí: há uma estreita relação entre Bruxaria e Xamanismo. Um dia eu volto aqui e falo só sobre isso, ok?

 

Voltando à questão da prática da cavalgada, comum às Bruxas, esse é talvez o fato mais importante que une Holda à prática da bruxaria. Na verdade, Holda é relacionada com a práticas da feitiçaria desde o século XI, quando temos o primeiro registro na literatura envolvendo essa Deusa.

 

Há até uma pequena confusão sobre o nome da Deidade para o qual as Bruxas prestariam culto, Hécate, Diana ou Holda. E não se sabe ao certo se tal confusão se deve ao fato de a Igreja ter generalizado o nome das Deusas cultuadas pelas Bruxas de diferentes regiões em diferentes épocas, transformando-as apenas em Diana. Ou se, como afirma o folclorista Lotte Motz, Holda seria o nome relacionado a um culto mais antigo e que, com o passar dos séculos, recebeu outras formas de chamamento com base nas culturas que se estabeleceram posteriormente.

 

O fato comum é que a figura de Holda, assim como a de Diana e Hécate estão ligadas à prática da Bruxaria. Porém, esta primeira ficou um pouco “esquecida” entre aqueles que reavivaram a Bruxaria nos séculos subseqüentes. Holda teve, porém, seu nome preservado por folcloristas, como Grimm, um dos que resgataram as lendas das culturas populares antigas, tão preciosas hoje pois ainda nos trazem resquícios dessa crenças pagãs.

 

 

O Conto Frau Holle (A Senhore Holle), de Os Irmãos Grimm

Uma viúva tinha duas filhas, das quais uma era bela e inteligente, a outra feia e preguiçosa. Mas ela gostava muito mais da feia , porque era a sua própria filha , e a outra tinha de fazer o trabalho da casa e ser a criada da casa. A pobre moça era obrigada a ir todos os dias para a rua, sentar-se na beira de um poço e fiar até que seus dedos sangrassem.
Aconteceu, certo dia , que a bobina ficou ensanguentada, e, por isso, ela se debruçou sobre o poço para lavá-la, quando a bobina lhe escapou da mão e caiu dentro do poço. A moça correu chorando para a madrasta e contou-lhe sua desgraça. Esta, porém, lhe passou uma descompostura tão violenta, e foi tão impiedosa, que disse:
– Se deixaste a bobina cair no poço, agora vai e traze-a de volta!
A pobre moça voltou para o poço, sem saber o que fazer. E, na sua grande aflição, pulou para dentro, para buscar a bobina. Ela perdeu os sentidos, e quando acordou e voltou a si, viu-se num lindo campo inundado de sol e coberto de flores. A moça foi andando por esse campo , até chegar a um forno que estava cheio de pão. E o pão gritava: – Ai, tira-me, tira-me, senão eu queimo , já estou assado há muito tempo. Então ela se aproximou e com a pá tirou os filões de dentro do forno.
Continuou o caminho , e chegou a uma árvore que estava coberta de maçãs, que gritava: – Ai, sacode-me , sacode-me, nós, maçãs, já estamos maduras. Então ela sacudiu a árvore até as maçãs caírem e não ficar nenhuma na árvore. E, depois de arrumar todas as maçãs num monte, continuou o caminho.
Finalmente, ela chegou até uma casa pequenina, da qual espiava uma velha, que tinha dentes muito grandes, como os de javali. A moça ficou com medo e quis fugir, mas a velha gritou-lhe: – De que tens medo minha filha? Fica comigo. Se fizeres os trabalhos da casa direito estarás muito bem. Só precisas prestar muita atenção ao arrumar minha cama, sacudindo o acolchoado com vontade, até que as penas voem, pois assim cairá neve no mundo¹. Eu sou a Senhora Holle.

Como a velha lhe falava mansamente, a moça criou coragem e entrou na casa para o serviço. Ela cuidava de tudo a contento da velha, e sacudia o acolchoado com vontade, até que as penas voassem como flocos de neve. Por isso tinha uma vida boa junto da velha , comia bem todos os dias.
Depois de viver com Senhora Holle por um tempo a menina começou a entristecer.
No começo, nem ela mesma sabia o que lhe faltava, mas finalmente percebeu que sentia saudades, embora aqui passasse mil vezes melhor que na sua própria casa, mas mesmo assim ela sentia saudades.
Finalmente ela disse à velha:
– A saudade me pegou e mesmo que eu passe aqui embaixo tão bem , não posso continuar. Tenho que subir e voltar para os meus.
A Senhora Holle lhe disse:
– Agrada-me saber que tu queres voltar para casa, e como tu me servistes tão fielmente , eu mesma vou te levar para cima. Ela tomou a mão da moça e levou-a para um grande portão. O portão se abriu e, quando ela estava bem debaixo dele, caiu uma forte chuva de ouro, e o ouro ficou pendurado nela, e ela ficou toda coberta de ouro.
– Isto é para ti, porque foste tão diligente , disse a velha e devolveu-lhe também a bobina que caíra no poço. Então o portão se fechou e a moça chegou novamente na superfície da terra e quando chegou ao pátio da casa, o galo que estava pousado no poço gritou:

“Cocoricó, cocoricó,
A donzela de ouro está aqui!”

Então a moça entrou em casa e, por estar toda coberta de ouro, foi bem recebida pela irmã e pela madrasta.
A moça contou tudo o que lhe acontecera , e quando a madrasta soube como ela chegara a tanta riqueza, quis arranjar a mesma sorte para a sua filha feia. Ela deveria sentar-se na beira do poço e fiar, para que a bobina caísse, ela precisaria picar seu dedo, mas ela meteu o dedo no espinheiro para ensanguentá-lo, aí jogou a bobina e pulou atrás.
Ela chegou, no lindo campo e continuou a caminhar. Chegou perto do forno e o pão gritou para ser retirado do forno pois já estava muito assado. Mas a preguiçosa respondeu:
– Não tenho vontade de me sujar, e foi embora.
Logo chegou perto da macieira que pediu que ela a sacudisse para as maçãs caírem porque estavam maduras. Mas ela respondeu:
– Não faço isso, pois pode cair uma na minha cabeça, e continuou no caminho.
Quando chegou à casa de Senhora Holle, não ficou com medo porque já ouvira falar dos seus dentes , e logo se engajou no serviço dela. No primeiro dia foi diligente e fez tudo direito pensando no que ia ganhar.
Porém, no segundo dia ela começou a ficar preguiçosa e no terceiro ela nem queria se levantar da cama e nem arrumar a cama de Senhora Holle como devia e as penas não voaram. Aí Senhora Holle cansou-se dela e a despediu. A preguiçosa ficou contente e pensou que agora viria a chuva de ouro .
Senhora Holle levou-a até o portão, a moça ficou embaixo dele, mas em vez de ouro foi despejado um grande pote de piche em cima dela.
– Isto é a recompensa pelos teus serviços, disse Senhora Holle e trancou o portão.

 

(disponível em: <http://www.grimmstories.com>)

 

¹ Observe aqui que há uma estreita relação entre os dois mundos, e que a Senhora Holda é a responsável por fazer nevar no Inverno.

 

 

Analisando o Conto e a vida de acordo com a Caçada Selvagem e o Solstício de Inverno

Fazendo uma análise desse Conto percebemos que ele nos traz uma reflexão sobre a troca entre Deuses e humanos. Aqueles que tratam os Deuses com nobreza, de forma nobre serão tratados.

“Um presente por um presente”

Lembro de uma situação que ocorreu entre dois amigos meus. Numa noite de Caçada Selvagem estávamos celebrando na praia e fizemos algumas oferendas. Logo depois de terminarmos o rito passou um morador de rua e pediu comida a um desses meus amigos que estava participando. Ele foi lá, pegou parte da comida que iríamos partilhar no rito (parte do que nos sobrou após retirarmos a parte dos Deuses) e deu ao morador de rua. Na mesma hora um outro amigo ficou revoltado, disse que ele não deveria ter dado a um cara “que parecia um bêbado, drogado” a comida que havia sido preparada de forma religiosa.

O que esse meu amigo raivoso não lembrou foi que em muitas culturas um “pedinte” ou “mendigo” aparece nas noites de inverno pedindo comida.

O mais curioso disso tudo é que o meu amigo gentil estava se sentindo mal há alguns dias antes do rito. Estava com uma raiva no coração e dores no corpo. Pois é… você já deve ter entendido a troca que houve ali. Os Deuses receberam cordialidade e em troca foram cordiais para meu amigo, dando-lhe o conforto que ele precisava.

 

Por fim, agora tenho uma sugestão pra você. Reserve um momento da noite de hoje, prepare uma comida gostosa para jantar com sua família, destine um tempo para sentar com seus filhos (ou aqueles que você ama) e leia esse Conto pra eles. Fale sobre o significado da Caçada selvagem e o Solstício de inverno. Mas quando abordar o significado do inverno, não fale só sobre o frio e a escassez, pois para a maioria de nós aqui no Brasil isso não faz sentido. Reflita sobre o valor simbólico que nos conta o Inverno das almas (a eternidade da alma, a morte)… E simbolismo que nos traz a Caçada Selvagem… esses sim são importantes.

 

Muitas bênçãos de Frau Holda (ou a Senhora Holle) pra vocês!

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2 Comentários

  • Reply
    Fenix
    22 de junho de 2017 at 23:46

    Adorei o texto sobre HoLda
    Gratidão pelo ensinamento

    • Reply
      Jess
      23 de junho de 2017 at 09:12

      Que bom que gostou, Fenix! ^^

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